Considerado o maior nome do chamado
Teatro do Absurdo, o irlandês Samuel Beckett possui vida e obra realmente
singulares. Poeta, romancista e dramaturgo, Beckett é único por ter escrito e
publicado em duas línguas – o inglês e o francês – uma obra definitiva para a
literatura mundial e, certamente, o único Nobel de Literatura nestas
circunstâncias (prêmio que recebeu em 1969). É também lembrado por ter sido
amigo e secretário de James Joyce, o maior nome das letras irlandesas.
Por Simone de Mello
"Diários Alemães" de Samuel Beckett, que completaria 100 anos
em 13 de abril, só foram lidos por poucos pesquisadores. Um livro descreve a
passagem do jovem escritor irlandês ainda desconhecido pela Berlim nazista da
década de 30.
O centenário de
nascimento de Samuel Beckett voltou a chamar atenção dos alemães para um
capítulo relativamente desconhecido da biografia do escritor irlandês: sua
viagem de estudos de seis meses pela Alemanha nazista em 1936–37.
Durante
sua estadia, Beckett escreveu diários minuciosos sobre o longo itinerário por
um país onde já estivera algumas vezes no final da década de 20, em visitas ao
tio William Sinclair,marchand residente
em Kassel.
Não é por falta de
curiosidade dos leitores que esta estadia de Beckett na Alemanha se manteve
desconhecida do grande público. Fato é que os chamados German Diaries, por serem
documentos pessoais, não podem ser publicados segundo o desejo do próprio
escritor, cumprido pelo administrador de seu espólio, o sobrinho Edward
Beckett.
Apenas
pesquisadores têm acesso aos documentos, divulgados somente em 1996, pela
biografia de Beckett escrita por James Knowlson.
Além do diário de
Hamburgo, publicado em fragmentos numa edição limitada de 150 exemplares em
2003, com o título de Alles
kommt auf so viel an (Tudo
depende de tanta coisa), pela autora e editora Roswitha Quadflieg, na tradução
de Erika Tophoven, o texto se mantém inacessível ao grande público.
Quadflieg
e Tophoven são autoras de duas publicações recentes da passagem de Beckett por
Hamburgo e Berlim, respectivamente: Beckett
was here: Hamburg im Tagebuch Samuel Beckett von 1936 (Beckett esteve aqui: Hamburgo no
diário de Samuel Beckett de 1936. Hamburgo:
Hoffmann und Campe Verlag, 2006) e Becketts
Berlin (A Berlim de Beckett.
Berlin: Nicolaische Verlagsbuchhandlung, 2005).
Viagem sentimental pela Alemanha

Hamburgo, Braunschweig, Berlim, Halle,
Weimar, Erfurt, Naumburg, Leipzig, Dresden, Freiberg, Bamberg, Würzburg,
Nurembergue, Regensburg, Munique. A longa viagem estendida durante 24 semanas, apesar de problemas
de saúde do jovem escritor de 30 anos, revela o interesse de Beckett por um
país cuja língua ele aprendera como autodidata, mas pretendia dominar melhor, e
cujas capitais culturais o atraíam por suas coleções de arte.
Após
ter escrito Murphy, um
romance que viria a ser publicado só em 1938, Beckett decidiu fazer sua
expedição pela Alemanha. Para alguns estudiosos, este era um momento de
desorientação, considerando as dúvidas do escritor sobre seu futuro literário,
e de impasse, após o fim de um relacionamento.
Além
disso, também havia a indefinição de onde se estabelecer, diante do desejo de
abandonar Dublin e a falta de vontade de retornar a Paris, cidade para a qual
mudaria definitivamente um ano depois. Mas também Beckett sabia que, com a
ascensão do nazismo, a Alemanha se tornaria cada vez mais inacessível aos
estrangeiros. Esta era a grande oportunidade para ver de perto tudo o que os
museus alemães abrigavam.
Escritor desconhecido em cidade com dias contados

Bert Lahr e E.G. Marshall, em 1956, numa apresentação de 'Esperando Godot' no Golden Theater, em Nova York
Ao contrário de sua
estadia em Hamburgo, onde se viu cercado de artistas e interlocutores
explicitamente avessos ao regime nazista, Beckett se manteve relativamente
isolado em Berlim, apenas em contato esporádico com pessoas fora de seu círculo
intelectual.
A
maior parte das seis semanas passadas na capital alemã, de dezembro de 1936 a
janeiro de 37, ele dedicou à visita sistemática dos acervos de arte e
arqueologia da Ilha dos Museus.
Beckett
captou muito bem o clima que pesava sobre a Alemanha, embora seja difícil de
saber até que ponto ele conseguia avaliar o alcance que o nazismo viria a ter.
Naquele momento, muitos intelectuais alemães, inclusive Thomas Mann, ainda
achavam que o regime de Hitler cairia por si só em breve. Beckett sabia, no
entanto, o que esperava os críticos do regime. Na opinião dos estudiosos, este
seria um dos motivos de ele economizar comentários mais longos contra o nazismo
em seus diários.
O
interessante ao ler o relato de Erika Tophoven sobre a passagem de Beckett por
Berlim é poder acompanhar os passos de um escritor ainda desconhecido, que
viria a se tornar um dos expoentes da literatura do século 20, por uma cidade
que – menos de dez anos depois – viria a ser inteiramente bombardeada. Um
Beckett que não conhecemos numa Berlim desaparecida.
Tradutora
como guia

Beckett chegou a Berlim depois das Olimpíadas de 1936. Cerimônia de inauguração em 01/08/1936, no Lustgarten, na Ilha de Museus
É
espantosa a minúcia com que Beckett enumera as obras apreciadas nos museus, os
bares e restaurantes pelos quais passou, os pratos que experimentou, os autores
alemães que leu pela primeira vez, como Gottfried Keller e Hermann Hesse, com
os quais não se mostrou nem um pouco satisfeito.
O livro Berlins Beckett é
interessante por oferecer subsídio histórico, em fatos e imagens, às anotações
do escritor (mantidas em parte em inglês), além de sempre remeter à sua obra,
quando pertinente.

Samuel Beckett, em setembro de 1967, durante ensaios de 'Fim de Jogo' no Schiller Theater, em Berlim
Além
de ter pesquisado os jornais locais, em parte lidos por Beckett no período
passado em Berlim, de ter recomposto a imagem da cidade na década de 30, Erika
Tophoven – que traduz Beckett para o alemão há mais de 35 anos, em parte com
seu marido, Elmar Tophoven – reconstrói a estadia berlinense como uma
tradutora, sem ofuscar as palavras do autor com demasiadas informações de
fundo.
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