quinta-feira, 24 de março de 2011

Roteiro boêmio de Antonio Maria

Pelas Noites de Copacabana
Maria Izilda Santos de Matos
Tematizar o bairro de Copacabana dos anos 40 e 50 é resgatar as ambigüidades e tensões de uma nova maneira de viver. O cronista Antonio Maria aponta exemplarmente esse processo:
“Assassínios, roubos, desquites. Muita notícia de câncer em pessoas conhecidas e nenhum telegrama, de Nova York ou Teresina, dizendo que o cachet da cura foi descoberto. Ao longo das praias de Botafogo, naquelas avenidas macias onde o automóvel dá 90, uma fedentina de morte. Falta d'água na zona sul. Bares e boates, com pias e torneiras inúteis, lavando pratos e talheres, só Deus sabe como. Contas altíssimas... E Copacabana, coitada, despoliciada e perigosa, sofre o trottoir das mulheres sem dono e traz para a porta dos seus bares: pederastas, traficantes de maconha e desordeiros da pior espécie. Numa dessas madrugadas, saindo do Vogue, dei com uma cena lamentável, na porta da "Tasca"... Pobre Copacabana! seu poeta, talvez por morar na zona norte cometeu a ingenuidade de dizer: "pelas manhãs, tu és a vida a cantar". De gente do governo, eu só conheço dona Alzirinha Vargas, por quem tenho serena simpatia. Aproveito-me desse conhecimento para pedir-lhe que dê um jeito na chamada "princesinha do mar". Uns três telefonemas seus serão o bastante para sanear e policiar um dos cantos mais famosos do mundo. Mas, talvez dona Alzirinha não seja de ler certos cronistas e esta nota se perca, envolta em todas as suas boas intenções.
Da guarita do Forte do Leme à guarita do Forte de Copacabana, de sentinela a sentinela, são 121 postes de iluminação, formando o "colar de pérolas", tantas vezes invocado em sambas e marchinhas...
As boates da praia abrem e fecham da noite para o dia. No antigo cineminha do Cassino Atlântico, uma casa de uma porta só já teve mil nomes e, agora, está fechada, após a última tentativa da senhora Elvira Pagá, que dançou sem roupa para uma meia dúzia de fregueses tristes. Depois, o Ranchinho, já sem Alvarenga, com Caymmi de chamariz. Num corredor, o Perroquet, com a decoração mais feia do mundo, sustentado por um show de carnaval, "made by" Colé e Nélia Paula. Além disso, só vai ter o Bambú, lá pra longe, resistindo e morrendo, morrendo e resistindo. As transversais, porém, estão cheias de bares. O "Siroco" e o "Mocambo" começaram bem, mantinham uma freguesia agradável e se degradaram, com o tempo. Hoje, na porta de cada um, há um guarda e dois investigadores, para o que der e vier. "La Conga", velha tabulete de Mme. Lili, abriu, fechou e abriu outra vez, na Prado Júnior. Lá dentro - dizem - há linda uruguaias da equipe de Mme. Lili, uma tentação para o marido em habeas corpus. Os restaurantes franceses, da marca do Bistrô, Cloche d'Or, French Can-Can, Cremaillére e Tout-en-bleu são mais de uma dezena. Atualmente, o mais freqüentado é o Bistrô... Defronte está o "Michel" e Mimi preserva um tom moreno iodado muito simpático, mesmo nos meses de inverno. Aí se encontram os donos da noite. Poetas e jornalistas vieram do Maxim's (depois que Freddy foi embora) e sentaram ao lado de políticos e banqueiros. Pares de namoro recente estão pelas mesas dos cantos, assim como quem não quer nada, de olhos baixos e conversa miúda. Música de um piano sonolento, tango de um violão super-argentino. Os homens dos bancos altos, em volta do bar, com o olhar parado, perguntando coisas ao Lopes, foram, em sua maioria, largados pelas mulheres. Na caixa, com um vestido negro, Mimi ouve, ri, fuma de piteira, diz "bonsoir" e fatura.

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Antonio Maria Araújo de Morais nasceu em 17 de março de 1921, em Recife (PE), filho de pai usineiro e que tudo perdera num desastrado lance de especulação com os preços do açúcar. Teve uma infância privilegiada: o desvelo materno, os tempos do colégio, as lições de francês, os banhos de rio e de praia e as férias na usina dos avós.
Cardiopata desde a infância, faleceu fulminado por um enfarte do miocárdio na madrugada de 15 de outubro de 1964, em Copacabana, quando se dirigia para o Le Rond Point; mesmo tendo sido socorrido por amigos que o viram cair e que se encontravam na boate O Cangaceiro, em frente daquele restaurante. Bom de copo e de garfo, Maria se auto-intitulava "cardisplicente", uma mistura de cardíaco com displicente. Profissão: Esperança.

Maria Izilda Santos de Matos é doutora em história pela USP, professora titular da PUC/SP, tendo pós-doutorado na Universidade de Lion II, França. Entre suas obras destacam-se Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana nos anos 50 (Bertrand Brasil), Ancora de Emoções (EDUSC), Meu lar é o botequim (Cia editora Nacional).

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Capinha de minha autoria para ilustração no post.

[41]3076-7631



Um comentário:

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Amigo, você é muito muito bom!
Visite também meu blog quando quiser, www.ofilmequeviontem.blogspot.com - ficarei honrada!

Abs
Danielle

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