segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Oduvaldo Vianna Filho


MUITO MAIS DO QUE A GRANDE FAMÍLIA: VIANINHA CONSTRUIU UMA DRAMATURGIA QUE INVESTIGOU AS ASPIRAÇÕES E OS DILEMAS DA CONDIÇÃO HUMANA

O seriado A grande família, escrito em plena ditadura militar, é a demonstração definitiva do talento criativo e da incrível habilidade de Vianinha para tentar para driblar as duas censuras (a do regime e a da própria emissora, a TV Globo). A partir do cotidiano de uma família da classe média remediada, ele conseguiu traduzir aspirações dos dilemas de boa parte da sociedade brasileira em meio ao chamado milagre econômico. Enquanto a máquina governamental de propaganda enaltecia os feitos do governo do general Médici, o seriado focalizava as agruras e as dificuldades impostas pelo modelo econômico excludente, perverso e entreguista em que o país vivia, com níveis alarmantes de concentração de renda e riqueza, ao mesmo tempo que as perseguições, as prisões, as torturas e os assassinatos de opositores do regime aconteciam, sob o manto do silêncio, nos porões de quartéis e órgãos de segurança. Vianinha soube mesclar a interpelação crítica da realidade com a comédia de costumes, criando uma atmosfera familiar à ampla maioria dos telespectadores, ao mesmo tempo em que infiltrava nos scripts uma série de temas, questões e impasses que caracterizavam a difícil vida do país nos anos chumbos. Tudo isso dentro de uma emissora de televisão que se alinhava ao regime militar e à sua política econômica elitista e antipopular. A enorme empatia do público com o seriado por certo contribuiu para dificultar uma censura mais severa por parte da Globo, na medida em que personagens e situações faziam somar pontos, fidelidade e liderança de audiência. Vianinha, na prática autoral, conseguiu evidenciar a importância de se explorarem brechas e contradições dentro dos grandes meios de comunicação, ocupando espaços preciosos na formulação de uma teledramaturgia mais próxima da moldura social brasileira, com sua carga atômica de mazelas, desigualdades e exclusões. Quanto à atual versão de A grande família, cabe registrar o sucesso de audiência conquistado em todos esses anos. Mas, à exceção do notável desempenho de Marco Nanini em um personagem (Lineu) muito fiel à concepção original de Vianinha, penso a versão no ar está muito longe de espelhar a riqueza e a energia crítica da versão original, que, como já ressaltado, foi exibida nos piores anos da repressão e, ainda assim, promovia um questionamento até mais inteligente, articulado e incisivo.
Vianinha nasceu, cresceu, formou-se e tornou-se adulto em uma família de militantes comunistas, como eram seus pais, o dramaturgo Oduvaldo Vianna e Deocélia Vianna. A construção de sua fisionomia política e intelectual tem muito a ver com a trajetória de resistência e luta dos pais. Os valores que ele assumiu ao longo da vida – sobretudo a necessidade de solidarizar-se com os oprimidos, recusando e combatendo o egoísmo e a ganância do meio burguês, bem como a exploração do homem pelo homem – desbordaram para a sua obra teatral de maneira coerente e permanente.

Ator Marco Nanine (63) internpreta o personagem Lineu há mais de 10 anos no programa de maior audiência da Rede Globo

Detestava a mentalidade consumista, os valores e a hipocrisia social. Tudo o que escreveu estava impregnado dessas visões de mundo, desses compromissos ético-políticos. Não foi, portanto, um teórico do que se poderia ser; ele, a muito custo e enfrentando dificuldades financeiras e incompreensões de várias ordens, procurava praticar, coerentemente o que pensava e acreditava (desafio imenso, quase uma impossibilidade, se extremarmos esse compromisso).
Vianinha, em apenas 38 anos, viveu pelo menos 100, tamanha a intensidade de seu envolvimento com suas crenças e com a exigência crucial de tentar transpô-las para fora de si, através do teatro e da arte, o que implicou um esforço descomunal para superar as contingências cotidianas e as barreiras impostas pelo tempo em que viveu. Esse esforço o tornou um homem múltiplo e mesmo multimídia (fez teatro, televisão, cinema, jornalismo, teoria crítica da cultura), ao mesmo tempo em que era um militante comunista em tempo integral, no setor cultural. 
Entrevista à Maura Voltarelli
Caricaturas: João de Deus Netto - Blog Picinez

Um comentário:

BLOGUE do valentim disse...

Excelente este blogue, como também o outro (Cinemascope). A ambos sigo no meu www.bloguedovalentim.com

Grande abraço.

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