Por Carlos Drummond de Andrade
Rubem Braga tinha 18 anos e já se
impusera como cronista em Belo Horizonte. Fazia no jornal “Estado de Minas” uma
coluna de leitura obrigatória. Sempre andejo, lá um dia viajou, deixando de
escrever. Mas o jornal resolveu engambelar os leitores, publicando uma crônica
de outro, com assinatura dele. Braga leu e telegrafou ao diretor Afonso Arinos:
“Não useis meu santo nome em vão”.
Impossível
usar o nome de Braga dando a sensação da prosa de Braga. Ela é patenteada. Seus
elementos — sensualidade, ternura, anarquismo, tédio, poesia, humour –, soltos,
são manipuláveis por qualquer um. Reunidos, formam um composto especificamente
braguino, que até dispensa assinatura. E como ele tem imitadores! Imitam,
apenas.
Lembro-me
muito do cronista jovem, esquivo e desconcertante. Ele namorava uma mocinha
loura da Secretaria do Interior, e não era raro ver o relato dos tristes ou
alegres passos do seu idílio, sob forma de crônica. Ninguém ousara fazer isso
antes e ninguém pensava em estranhá-lo, pois era deliciosamente bem feito.
Braga se tornou menestrel de todos os namorados sem expressão artística, e até
dos que haviam namorado há muito tempo e voltavam a sentir o gosto da coisa,
através do lirismo dele.
Pois
um rapaz assim, apaixonado (à sua maneira) pela loura filha do Clarindo, um dia
nos aparece correspondente do jornal no “front” da Revolução Constitucionalista
de 1932, e logo se boqueja que ele era um espião terrível dos paulistas entre
mineiros, espião que seria conveniente prender, submeter a corte marcial e,
quem sabe, fuzilar. Oh, imaginação! (Mas a cara dele era meio russa, não sei.)
Numa crônica, Braga confessa: “Eu era espião; era espião da vida no meio da
morte. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer sorrir, eu não reconhecia
aliados nem inimigos; apenas via homens pobres se matando para bem dos homens
ricos; apenas via o Brasil se matando com armas estrangeiras”. Quem via essas
coisas, sem a névoa passional que perturbava tanta gente, era um mocinho de 19
anos, que escreveria aos 34: “Eu observo as coisas com dois olhos que, embora
castanhos e mesmo tirantes a verde, vêem este mundo com bastante clareza”.
E
esta é a qualidade mestra e inesperada de Braga: lucidez. Um homem que diz
tantas coisas absurdas ou surrealistas pode lá ser bom observador da vida?
Perfeitamente. Sempre que necessário, Braga emite juízos ponderados sobre fatos
políticos, econômicos, sociais, e se nem sempre ou quase nunca sua opinião
coincide com a opinião estabelecida ou vitoriosa, isto nada prova contra a
justeza da sua visão intelectual e o seu bom senso; prova apenas que tais
atributos não gozam de muito favor na coletividade.
Não
é, porém, a clareza da apreciação de Braga, ante os acontecimentos por assim
dizer jornalísticos, que impressiona. É sua clareza diante da vida em si, e das
coisas naturais. Como espião da vida parecendo chateado, mas interessadíssimo —
anota os maravilhosos fenômenos da primavera e do verão, que passam
despercebidos ao comum, e extrai deles o máximo proveito existencial. As artes
da caça, da pesca e do amor, a observação constante do vento noroeste, o
contato com praia e águas correntes, água corrente ele mesmo, a notícia de
passarinhos, insetos, frutas, paisagens, a celebração quase litúrgica das
graças e mistérios da mulher (para ser gentil, um dia ele me disse em carta que
gostaria de me presentear com uma pequena fragata e quatro ou cinco mulheres),
o dom de sentir, valorizar e distribuir a natureza como um bem de que andamos
todos cada vez mais precisados — esta a lição de Braga, “lição de insaciável
liberdade e gosto de viver”, que é grato proclamar no dia em que o admirável
professor completa cinqüent’anos com a naturalidade, o gosto da vida e da
terra, e o intenso sentimento poético e humano que tinha aos dezenove.
Escrito
por Carlos Drummond de Andrade em 17
de janeiro de 1963
A OBRA
E A SÍNTESE DOS MELHORES CONTOS DE RUBEM
BRAGA AQUI
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