Mario Rodrigues
Certa vez, Lygia
Fagundes Telles ouviu da amiga Clarice Lispector a seguinte frase: “Não sorria
em fotografias. Uma escritora sorridente não é levada a sério”. Lygia nunca
obedeceu a esse conselho. Seus retratos ao longo dos anos, publicados em
revistas ou jornais, estão cheios de sorrisos, em meio a algumas poses mais
austeras. Nenhum deles impediu que ela avançasse na carreira literária. Não que
a observação de Clarice Lispector fosse descabida, dada a condescendência com
que as mulheres, no trabalho intelectual, podiam (e eventualmente ainda podem)
ser tratadas. Mas o talento de Lygia era substancial demais para ser ignorado.
E sua personalidade jamais permitiu que confundissem sua leveza com
frivolidade.
“A história da minha família pelo
lado paterno se encaixa naquele ditado: pai rico, filho doutor, neto mendigo. A
neta fui eu”, diz a escritora. Em 1936, quando Lygia tinha 13 anos, ela e a mãe
retornaram a São Paulo para uma vida de “classe média empobrecida”, enquanto o
pai continuava com suas andanças pelo interior. Em 1941, ela ingressou na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, quando sua vida e a da cidade
começaram de fato a se entrelaçar.
Lygia é uma daquelas
personalidades de quem se costuma dizer que “conhece todo mundo”. Ainda nos
anos 40, de boina e meias de golfe puxadas até o joelho (duas modas que diz ter
lançado como aluna de direito), ela era ativa organizadora de saraus com
autores famosos no grêmio estudantil. Trouxe a São Paulo para dar palestras
Cecília Meireles e Érico Veríssimo. Ia com os amigos comer pipoca no
apartamento de Oswald de Andrade, enquanto ele lia seus textos inéditos. E
ouviu de Mário de Andrade a confidência de que ele se achava “um canhão”, num encontro
relatado na crônica Durante
Aquele Estranho Chá. O espírito sociável fez com que desenvolvesse
laços com um grande número de escritores mais velhos ou mais jovens e com que
se sentisse à vontade em instituições que muitos consideram vetustas – ela é
imortal da Academia Brasileira de Letras e integrante, igualmente, da Academia
Paulista de Letras . O medo de
avião (“e do mosquito da dengue”) faz com que já não seja assídua dos chás da
primeira, no Rio de Janeiro. Mas ela raramente falta aos encontros semanais da
Academia Paulista, no Largo do Arouche.
Aos 85 anos teve de lidar com a
perda de pessoas próximas. Pode-se encarar cada perda como uma amputação – mas
Lygia tem outro método. “Há uma soma de seres que eu amei e que já se foram,
mas, de um certo modo, eles ficaram um pouco em mim”, afirma em um de seus
textos. “É difícil explicar com clareza, mas eu chamaria, assim, uma espécie de
legado. E o fato é que me impregnei desse legado lá no indefinível que nos
habita, a alma.” Seus livros contêm homenagens aos mortos. O posfácio da nova
edição do roteiro Capitu, baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, pode ser lido
dessa forma. É um instantâneo de seu casamento com o crítico de cinema Paulo
Emílio Sales Gomes, no auge da felicidade doméstica. O casal morava num
apartamento na Rua Sabará, em Higienópolis, endereço mágico na memória afetiva
da escritora. Eles tinham dois gatos. Paulo Emilio a chamava de Kuko –
referência ao relógio cuco de uma avó inglesa que, assim como Lygia, estaria
sempre atrasado. Aqueles que conviveram com o casal dizem que foi tanto um
grande amor quanto um relacionamento calcado na admiração. Paulo Emílio morreu
em 1977, vitimado por um ataque cardíaco. Um detalhe ficou gravado na memória
de Lygia sobre esse dia. Ele usava uma camisa de algodão estampada, com
cavalinhos galopando num fundo azul-claro. “Quando eu vi a camisa jogada numa
cadeira no hospital, soube que estava acabado.”
A morte do filho ainda não chegou
aos textos de Lygia. Ele nasceu do primeiro casamento da escritora, com o
jurista Goffredo da Silva Telles Jr., e é pai de suas duas netas, Lúcia e
Margarida. Morreu em 2006, aos 52 anos, depois de um período enfermo e
intranqüilo. “Eu fiquei trespassada, urrava de dor”, diz Lygia. Na sala de seu
apartamento há uma cópia do livro O Demônio do Meio-Dia, do americano Andrew Solomon. Trata-se
de um estudo sobre a depressão, um mal que Lygia experimentou. Ela atravessou
vários meses à custa de calmantes. Fez análise, mas não encontrou alívio.
Apesar das imagens de santos guardadas no apartamento, a religião tampouco era
um consolo. “Eu não sou tão ligada a Deus”, diz ela. No fim, foi por meio do
trabalho que ela se reergueu. “Um dia, eu disse: ‘Chega de pílulas’. E voltei
aos meus escritos.”
Em breve, talvez haja um novo
romance de Lygia. Ela faz um “T” com as mãos, como as atletas de vôlei quando
querem interromper um jogo. “Está chegando a hora de pedir um tempo”, afirma. O
método da autora sempre foi fixar uma narrativa na imaginação antes de passá-la
ao papel. “Do mesmo jeito que, na infância, eu guardava borboletas dentro de
caixas de sabonete”, diz ela. Há vários meses, Lygia convive com uma
personagem. Sente que pode estar chegando o momento de aninhá-la em seu colo e
escrever: “Então, eu vou ficar feliz”.
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