terça-feira, 1 de maio de 2012

A CIRANDA DE LYGIA



Mario Rodrigues

Certa vez, Lygia Fagundes Telles ouviu da amiga Clarice Lispector a seguinte frase: “Não sorria em fotografias. Uma escritora sorridente não é levada a sério”. Lygia nunca obedeceu a esse conselho. Seus retratos ao longo dos anos, publicados em revistas ou jornais, estão cheios de sorrisos, em meio a algumas poses mais austeras. Nenhum deles impediu que ela avançasse na carreira literária. Não que a observação de Clarice Lispector fosse descabida, dada a condescendência com que as mulheres, no trabalho intelectual, podiam (e eventualmente ainda podem) ser tratadas. Mas o talento de Lygia era substancial demais para ser ignorado. E sua personalidade jamais permitiu que confundissem sua leveza com frivolidade.
“A história da minha família pelo lado paterno se encaixa naquele ditado: pai rico, filho doutor, neto mendigo. A neta fui eu”, diz a escritora. Em 1936, quando Lygia tinha 13 anos, ela e a mãe retornaram a São Paulo para uma vida de “classe média empobrecida”, enquanto o pai continuava com suas andanças pelo interior. Em 1941, ela ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, quando sua vida e a da cidade começaram de fato a se entrelaçar.
Lygia é uma daquelas personalidades de quem se costuma dizer que “conhece todo mundo”. Ainda nos anos 40, de boina e meias de golfe puxadas até o joelho (duas modas que diz ter lançado como aluna de direito), ela era ativa organizadora de saraus com autores famosos no grêmio estudantil. Trouxe a São Paulo para dar palestras Cecília Meireles e Érico Veríssimo. Ia com os amigos comer pipoca no apartamento de Oswald de Andrade, enquanto ele lia seus textos inéditos. E ouviu de Mário de Andrade a confidência de que ele se achava “um canhão”, num encontro relatado na crônica Durante Aquele Estranho Chá. O espírito sociável fez com que desenvolvesse laços com um grande número de escritores mais velhos ou mais jovens e com que se sentisse à vontade em instituições que muitos consideram vetustas – ela é imortal da Academia Brasileira de Letras e integrante, igualmente, da Academia Paulista de Letras . O medo de avião (“e do mosquito da dengue”) faz com que já não seja assídua dos chás da primeira, no Rio de Janeiro. Mas ela raramente falta aos encontros semanais da Academia Paulista, no Largo do Arouche.
Aos 85 anos teve de lidar com a perda de pessoas próximas. Pode-se encarar cada perda como uma amputação – mas Lygia tem outro método. “Há uma soma de seres que eu amei e que já se foram, mas, de um certo modo, eles ficaram um pouco em mim”, afirma em um de seus textos. “É difícil explicar com clareza, mas eu chamaria, assim, uma espécie de legado. E o fato é que me impregnei desse legado lá no indefinível que nos habita, a alma.” Seus livros contêm homenagens aos mortos. O posfácio da nova edição do roteiro Capitu, baseado no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, pode ser lido dessa forma. É um instantâneo de seu casamento com o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, no auge da felicidade doméstica. O casal morava num apartamento na Rua Sabará, em Higienópolis, endereço mágico na memória afetiva da escritora. Eles tinham dois gatos. Paulo Emilio a chamava de Kuko – referência ao relógio cuco de uma avó inglesa que, assim como Lygia, estaria sempre atrasado. Aqueles que conviveram com o casal dizem que foi tanto um grande amor quanto um relacionamento calcado na admiração. Paulo Emílio morreu em 1977, vitimado por um ataque cardíaco. Um detalhe ficou gravado na memória de Lygia sobre esse dia. Ele usava uma camisa de algodão estampada, com cavalinhos galopando num fundo azul-claro. “Quando eu vi a camisa jogada numa cadeira no hospital, soube que estava acabado.”
A morte do filho ainda não chegou aos textos de Lygia. Ele nasceu do primeiro casamento da escritora, com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., e é pai de suas duas netas, Lúcia e Margarida. Morreu em 2006, aos 52 anos, depois de um período enfermo e intranqüilo. “Eu fiquei trespassada, urrava de dor”, diz Lygia. Na sala de seu apartamento há uma cópia do livro O Demônio do Meio-Dia, do americano Andrew Solomon. Trata-se de um estudo sobre a depressão, um mal que Lygia experimentou. Ela atravessou vários meses à custa de calmantes. Fez análise, mas não encontrou alívio. Apesar das imagens de santos guardadas no apartamento, a religião tampouco era um consolo. “Eu não sou tão ligada a Deus”, diz ela. No fim, foi por meio do trabalho que ela se reergueu. “Um dia, eu disse: ‘Chega de pílulas’. E voltei aos meus escritos.”
Em breve, talvez haja um novo romance de Lygia. Ela faz um “T” com as mãos, como as atletas de vôlei quando querem interromper um jogo. “Está chegando a hora de pedir um tempo”, afirma. O método da autora sempre foi fixar uma narrativa na imaginação antes de passá-la ao papel. “Do mesmo jeito que, na infância, eu guardava borboletas dentro de caixas de sabonete”, diz ela. Há vários meses, Lygia convive com uma personagem. Sente que pode estar chegando o momento de aninhá-la em seu colo e escrever: “Então, eu vou ficar feliz”.

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