quarta-feira, 9 de maio de 2012

Cora Coralina Cozinheira, quituteira e mãe



por Cristina Brayner

Há dez anos, eu fui conhecer as famosas praias do rio Araguaia, em Goiás. Éramos um grupo grande de amigos ocupando uma casa num final de semana idílico. Naquela época, eu nem pensava na possibilidade de mudar de profissão e me tornar uma cozinheira,   
 
mas como já curtia esse trabalho, me ofereci para fazer a comida. Pela tarefa realizada, recebi um presente: um livro daquela que foi a cozinheira mais famosa do estado, a poetisa Cora Coralina.
Abri o livro com avidez, olhei os títulos dos poemas no índice e li um chamado "Cora Coralina, quem é você?". Logo no início tenho um arrepio de prazer: “- Sou mulher como outra qualquer. / Venho do século passado / e trago comigo todas as idades". Mais adiante ela me conquistou definitivamente: "- Sou mais doceira e cozinheira / do que escritora, sendo a culinária / a mais nobre de todas as Artes: / objetiva, concreta, jamais abstrata / a que está ligada a vida e a saúde humana."
Mergulhei na obra dessa escritora com tanto prazer quanto mergulhei no Araguaia e viajei na poesia dessa goiana, onde a alma de cozinheira é evidenciada em inúmeros poemas.
Cora Coralina foi o nome escolhido por Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas para a poetisa que vivia dentro dela. Nasceu em 20 de agosto de 1889 e faleceu em 10 de abril de 1985. Teve quatro filhos, 15 netos e 29 bisnetos. Renomada doceira, profissão que exerceu por mais de vinte anos, chegou a deixar um livro de receitas. Embora escrevesse desde os 14 anos, tinha 76 quando seu primeiro livro foi publicado e quase 90 anos quando sua obra chegou as mãos de Carlos Drummond de Andrade, responsável por sua apresentacao no mercado.
Da cidade de Goiás Velho, onde nasceu, saiu para o estado de São Paulo, vivendo fora por 45 anos. Retornou em 1954, passando a dedicar-se aos doces, sobretudo os cristalizados.
Frutas, ela as tinha de sobra, num estado tão rico. Em Goiás, é famoso o Empadão Goiano; feito com frango, linguiça, queijo, ervilhas, azeitonas, ovos e guariroba, uma espécie de palmito amargo. Também típico na região é o Arroz com Pequi, uma fruta amarela, parecida com a ameixa, de sabor forte e aroma penetrante. Além disso, são deliciosas as pamonhas feitas com queijo, lingüiça, cheiro-verde e pimenta. Estas, são tão comuns no estado, que quando se quer frisar a insignificância de uma cidadezinha qualquer, a expressão consagrada é: "só tem igreja e pamonharia".
As guloseimas são muitas, como o Bolo de Arroz, feito com fubá socado, açucar, água e fermento natural; os sequilhos, biscoitos de polvilho, as broas de milho e os pães de queijo. Cora Coralina apreciava muito os pães. No poema "Eu Voltarei", ela começa dizendo: " - Meu companheiro de vida será um homem corajoso / de trabalho, / servidor do próximo, / honesto e simples, / de pensamentos limpos ./ Seremos padeiros e teremos padarias. "
Num outro, intitulado "Pão-Paz", de um lirismo religioso, ela derrama sua homenagem: "- O Pão chega pela manhã em nossa casa. / Traz um resto de madrugada. / Cheiro do forno aquecido, de lêvedo e de lenha queimada. / Traz as mãos rudes do trabalhador e a Paz dos campos cheios. / Vem numa veste pobre de papel. Por que não o receber / numa toalha de linho puro e com as mãos juntas / em prece e gratidão?”
Cora Coralina, cozinheira, quituteira, doceira, uma mãe brasileira! Uma mulher que viveu à imagem e semelhança de tantas outras mães desse Brasil, fazendo de sua sensibilidade o alimento dos entes queridos. A vocês, a minha homenagem com um trecho do poema de Cora Coralina, "Todas as Vidas":
"Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de Picuma. Pedra pontuda. Cumbuco de coco."
Cristina Brayner
Chef, formada pela famosa escola Le Cordon Bleu. Atualmente mora nos EUA, onde dá aula de culinária francesa e administra uma empresa de prestação de serviços 
Cora Coralina
(1889-1985)
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